quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Amanda

Depois de tantos amores e desamores, encontros e desencontros e mais tantos outros possíveis reencontros, ele deixou de amar. Perdeu a esperança talvez como conseqüência por já ter perdido tanto as estribeiras. Há muito estava cansado. Pensava até em abster-se de todo prazer carnal que o sexo e outras delícias pudessem lhe conferir, mas em poucos instantes obviamente mudou de idéia. Porém amar, isso jamais. Isso nunca mais. Tinha certeza absoluta. Tocar, cheirar, beijar, lamber, morder, transar, gozar... Tudo era aceito para satisfazer aquele seu corpo sedento de contato. Mas voltar a amar, isso não poderia se permitir.
Noites a fio, madrugadas adentro, curava suas dores afogando as mágoas em qualquer substância etílica que lhe aparecesse. Cotovelo ferido, olhos desgostosos, bebia e chorava, cantava e sorria, lembrava e morria, todos os dias, dia após dia. E era assim que desde então ele vivia. Pobre doente de amor a contar e recontar os seus fracassos amorosos.
Um dia deixou um pouco de lado aquela estranheza habitual que o estava dominando e saiu para beber com alguns velhos amigos. Todos queriam animá-lo e acabou sendo uma noite super agradável. Bebeu, bebeu, sorriu, abraçou, fumou e conversou bastante. Fazia tempo! E enquanto a química rolava, o porre se esticava. A cada estabelecimento que fechava por causa do horário que ia se prolongando, eles pediam a saideira, depois a ideira e logo após a expulsadeira, botando maior boneco pra irem embora. De bar em bar, foram descendo pelo caminho que levava ao centro, e depois à praia.
Cinco da manhã, a mente em alta, a comédia acabando, nascia o sol lá na tênue divisa entre o céu e o mar. Olhou aquilo e lembrou-se de como era lindo o nascer do sol e de quanto tempo já ele não o via. Ao observar seus amigos, os viu aos pares, abraçadinhos, casal por casal, se aquecendo naquele friozinho que a brisa traz no amanhecer. Sentiu-se só e pensou no quanto era importante uma pessoa ao seu lado, a quem ele pudesse contar seus problemas, com quem ele quisesse partilhar suas experiências. Então lembrou de sua decisão de não mais poder amar, de não mais se deixar envolver, de não mais sofrer de amor (como se houvesse uma forma de fazê-lo), de não mais passar pelo que passou. Mas era tão importante alguém. Alguém que fosse sua cúmplice, alguém que tivesse afinidades com ele. Mas quem? Quem seria essa mulher? Quem seria essa capaz de em si ter todas as qualidades que eram fundamentais para ele? Só um sonho mesmo. Só se ela fosse inventada. Ops! Inventada?
Sim. Como era boa a idéia. Ele criaria para ele mesmo a mulher ideal. A mulher que fosse realmente o encaixe perfeito dele próprio. Linda, cheirosa, simpática, carinhosa, inteligente, agradável, atenciosa, ma-ra-vi-lho-sa... Possuidora de todas as qualidades que ele pudesse imaginar. Bingo! Que jogada de mestre. E foi assim que ele fez. Começou a inventá-la dando-lhe qualidades essenciais para um convívio a dois, mesmo que seu lar fosse apenas a sua imaginação. Mas como chamá-la? Afinal, o amor da sua vida tinha que ter um nome.Um nome especial. Um nome ímpar. Mas qual? Pensou em vários até que decidiu-se por Amanda. “Digna de ser amada”. Pois era essa a mulher com que sonhava. Haveria de ser uma mulher digna de ser amada. Digna de possuir o seu amor. Digna de receber todas as glórias, todos os cânticos, todos os versos.
Voltou para casa pensando em Amanda. De como faria para se comunicar com ela. Afinal, ficar de bobeira só pensando não dava um ar de realismo ao seu plano. Das suas entranhas de ex-poeta-de-caderninho-que-não-mostra-pra-ninguém tirou alguma veia poética e começou a escrever um poema. Um poema para Amanda. Um poema para o seu amor.
Poesia à parte, escreveu seu texto e o guardou numa caixa. Um dia o entregaria pessoalmente. Tinha certeza disso. Sua Dulcinéia particular. Sua Julieta metafísica.
Amanda era tudo de bom. Logo, logo seu astral mudou, sua auto-estima ficou em alta. Todos percebiam. Agora tinha um motivo para ser feliz. Amanda existia. E ela era perfeita. Um dia iam se encontrar, para concretizarem seu amor. Mas enquanto isso não acontecia, ele escrevia-lhe cartas, poemas, bilhetes, os quais colocava em envelopes antes de guardar na mesma caixa. Infelizmente não tinha o seu endereço e por isso não podia enviar as cartas à Amanda. Estava guardando para um momento único, quando enfim se encontrariam. Num futuro próximo, segundo ele.
Passava o dia assim, pensando em Amanda, escrevendo-lhe seus sentimentos, seus pensamentos, seus planos... Aéreo do mundo e de tudo em sua volta, como se só existissem eles dois.
Um dia um gozador morador da vizinha passou e foi insultar-lhe.

-O que você está escrevendo? Aquelas cartas de amor que você guarda numa caixa? Pra uma suposta mulher que somente você viu na praia?
-Sim. São para Amanda. Minha amada. Um dia nos reencontraremos. Ela está me esperando. Ela me ama.
-Te ama? Kkkkkkk. Como pode afirmar isso se você tem todas as cartas em seu poder? Ela nunca leu nenhuma dessas cartas. Ela nem lembra de você.
-Mas, mas...

O gozador começou a vaiá-lo. O rapaz pegou sua caixa e saiu cabisbaixo. Envergonhado. E o pior: desiludido. Afinal, o gozador tinha razão, Amanda sequer recebeu uma correspondência sua. Sequer lembrava que ele existia. Emudecido foi ao bar, pediu uma terça de pinga, tomou de dois goles. Na sinuca, o malandro o fitava dos pés a cabeça. Mapeou suas expressões e perguntou curioso:

-O que aconteceu? Nunca mais te vi bebendo. Tinha se curado daquelas dores de cotovelo e nunca mais apareceu por aqui. Andava só escrevendo umas cartas pra uma namorada sua que mora fora.
-É justamente por causa dela que voltei.
-E o que ela fez contigo?
-Não foi ela. Fui eu. Nunca consegui pegar seu endereço, então todas as cartas que escrevi estão aqui nesta caixa. Ela sequer sabe que eu existo. Nunca mais nos vimos depois do nosso primeiro encontro.
-E onde é que foi o primeiro encontro?
-Foi na praia. Na orla.
-Então volta lá, mané. Talvez alguém te informe.

Saiu às pressas dando obrigado ao malandro. Correu o máximo que pôde. Tinha que chegar na praia urgentemente. Como não tinha pensado nisso antes? Era óbvio. Ao chegar no mesmo local daquela noitada que ocasionou seu primeiro encontro com sua amada, parou, olhou em volta e não viu ninguém que a conhecesse. Ficou lá sentado, na esperança de que Amanda aparecesse por lá. Enquanto anoitecia, ele lia as cartas, os bilhetes, os poemas e lembrava de tudo o que viveram juntos. Recordava de cada detalhe de seu rosto, de cada expressão de seu sorriso. Como era bela, como era delicada. O tempo passou rápido, o galo cantou, logo amanheceu. O sol foi despontando devagarzinho, ele deslumbrou-se com o nascer do dia. Fazia tempo que não via, desde seu primeiro encontro com Amanda (aliás, nos últimos tempos, ele só tinha tempo para ela). Era mesmo uma coincidência. Olhou pro céu, olhou pro mar, olhou pro sol...Pensou consigo sobre a procedência de Amanda. Tão maravilhosa, tão estupenda. Fitou novamente o encontro do céu, do sol e do mar. Foi como reencontrar com ela. Sentia sua presença ali. E era forte demais.
Pegou a caixa com as cartas e arremessou contra a maré. As ondas a levariam para o alto oceano. Sorridente, ele tinha certeza: mulher como aquela só podia morar no horizonte, lá por detrás da alvorada.


Guethner Wirtzbiki, 30/01/2008